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Momentos de dor, texto de autoria do padre Alexandre Fernandes, pároco da Paróquia Bom Jesus do Vale sediada em Nova Lima, aborda a dor humana e a importância do acolhimento e da sensibilidade para se cuidar de todas as feridas; as feridas do corpo e da alma.
As palavras de padre Alexandre me fizeram lembrar o livro que relata a história de São Lucas: Médico de Homens e de Almas, da escritora Taylor Caldwell.
São Lucas, um dos mais importantes ícones da igreja cristã é apresentado na Bíblia, como um grande médico, bem instruído e de coração generoso, em constante preocupação com o sofrimento dos enfermos, dos oprimidos e dos pobres. São Lucas sempre inspirou pessoas que se dedicam a cuidar do outro: enfermeiros, médicos, cuidadores e religiosos. Arrisca-se a dizer que a história de São Lucas retrata a história da peregrinação de todos os homens através do desespero, do sofrimento, da angústia, da dúvida e da desesperança e se culmina com a compreensão de Deus e do eterno.
MT
Dizemos que Deus vive, eterno e perfeito, e que a vida contínua e eterna é de Deus, pois Deus é a vida eterna.
(ARISTÓTELES)
Momentos de dor
(Padre Alexandre 03/2020)
Antes de iniciar a missão como capelão de um hospital, fiz meu “pré-operatório” com o Médico dos médicos em encontros especiais com Ele. Para que o Senhor limpasse meus medos internos e me ensinasse a consolar. Não é fácil entrar naqueles corredores silenciosos e inquietos, cheios de expectativas, a cada momento os aparelhos revelando diagnósticos. “Silêncio” – dizem os cartazes. Nem é preciso pedir. Em um hospital todo mundo fala baixo porque ali são os corações que conversam uns com os outros.
Eu já estava acostumado a lidar (e escutar) com as dores e alegrias da alma, agora teria pela frente as dores do corpo, que também fala. Como levar a palavra do Evangelho, a Boa Nova de Cristo, em um lugar de tantos contrastes? Precisei refletir no deserto do silêncio, meditar e me capacitar para a função, aprender que o adoecimento e o sofrimento acontecem na integralidade da pessoa. Estar preparado para a escuta dos medos e angústias do doente. Fiquei 20 anos, indo uma vez por semana, às vezes mais.
Trabalhar em um hospital é enfrentar a realidade nua e crua. Ali não há máscaras, disfarces, estilos. Não há crentes, nem ateus, nem santos. O sofrimento torna a todos iguais, embora cada quarto tenha sua história, cada leito um destino. Alguém que acaba de ganhar alta e alguém que recebe um diagnóstico difícil. Gente apressada, que só pensa em sair dali, e pacientes dóceis, que se submetem ao tratamento sem questionamentos. Crianças no fim da existência e idosos tentando viver um pouco mais.
Acompanhei muitos momentos de luto, situações delicadíssimas. E fui percebendo que as pessoas não têm medo de morrer, mas de sofrer. São as horas de dores, os longos tratamentos, a necessidade de estar ligado a um aparelho, sem movimentos, os causadores das grandes aflições, tanto do paciente quanto dos familiares. A mesma doença que provoca as mesmas dores tem reações diferentes. O capelão precisa ter palavras e sensibilidade para cuidar de todas as feridas.
Logo vi que a missão estaria baseada em três verbos, cujas ações deveriam ser exercidas, na medida do possível, à perfeição. Consolar poderia vir em primeiro lugar, como a função que se espera de um capelão, principalmente em um país com uma população composta na maioria por confessantes de alguma fé. No Antigo Testamento Deus consolava seu povo. Salmos, Isaías, Jó, Jeremias são livros cheios de palavras da consolação divina. No Novo Testamento, Jesus consolava as multidões e os discípulos, as irmãs Marta e Maria. O capelão consola com o carinho, a atenção especial, uma palavra que os mensageiros do Alto inspiram.
O segundo verbo é escutar. Alguém fica sabendo que há um sacerdote ali e logo pede para dar uma chegada lá também. Pessoas o identificam no elevador, nos corredores, às vezes nem católicos são, mas querem uma palavra, um carinho. A dimensão subjetiva e religiosa tem um peso enorme no ambiente hospitalar. A presença de um religioso em um quarto condenado pela doença pode iluminar como a radiosa luz da manhã. Parece que o eterno os veio visitar e que há esperança ainda. Palavras vãs são totalmente dispensáveis. É hora de escutar o outro, a dor do outro.
As confissões mais lindas, mais profundas, mais verdadeiras, eu as ouvi no hospital. O paciente já perdeu tudo, até a dignidade física, com o corpo sendo virado para lá e para cá, tratamentos invasivos, então o doente se abre, fala sem censura. O que é passageiro está acabando, a terra ficando mais longe, o céu se aproximando. Tudo pode acabar dali a pouco.
Também faz parte da missão enxugar as lágrimas. Do paciente, dos familiares, dos médicos, enfermeiros, do pessoal da limpeza. Certa vez uma faxineira me procurou fragilizada falando que seu trabalho não tinha valor. Ela se assustou quando respondi que a função dela também salvava vidas. “Se você não fizer a assepsia do local de maneira correta, podem surgir germes, vírus perigosos que contaminam e matam”. Em um hospital existe dor em qualquer lugar.
Consolar, escutar, enxugar. No ambiente hospitalar, o capelão vê o Cristo naquele que sofre enquanto o doente vê no sacerdote uma faísca da eternidade. Deve ser assim, eu penso.
Padre Alexandre – pároco da Paróquia Bom Jesus do Vale (Nova Lima)