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A contribuição do BioParque na vivência do Luto

Categoria Luto

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Eunice Moreira Fernandes Miranda, Psicóloga Humanista-Existencial, é uma das organizadoras do livro – PSICOLOGIA, SAÚDE E HOSPITAL, que traz importantes contribuições para a prática profissional de psicólogos e estudiosos da psicologia da saúde. Co-organizou também o livro – Fundamentos e Aplicações da Abordagem Centrada na Pessoa e da Psicoterapia Experiencial – lançado recentemente e que possibilita a reflexão sobre fundamentos importantes da Psicologia Humanista.

       

 

 

Eunice faz uma breve apresentação:

Comecei a trabalhar como psicóloga hospitalar em 1986 e tudo o que fui aprendendo trouxe-me um sentido e um significado próprio, que ressoou em mim de uma maneira tão intensa que passei a ressignificar a minha própria vida. Passei por aprendizados que me possibilitaram perceber que o morrer e o (re) nascer fazem parte de todas as nossas experiências, são dois aspectos de uma mesma realidade. Eu costumava dizer que no hospital temos um encontro marcado com nós mesmos. E foi a partir dessas vivências, da existência e da experiência e nas de tantas outras pessoas que busquei o encontro inter-humano durante o meu exercício profissional, bem como igualmente procurei entender o sentido da dor e do sofrimento daqueles que ansiavam por uma solução ou um alívio diante do seu adoecimento físico e do medo de morrer.

Trago aqui alguns excertos do capítulo “Ser: o sentido da dor na urgência e emergência”, de minha autoria junto com a psicóloga Érika Nazaré Sasdelli, publicado no livro “E a psicologia entrou no hospital” de Valdemar Augusto Angerami (org.). “O existencialismo convida a uma reflexão sobre a existência humana que é determinada pelas contingências da vida e pelas circunstâncias históricas e sociais. O ser humano também é marcado pelas adversidades (um acidente, por exemplo) e por certa quantidade de sofrimentos que envolvem dor, medo, fracasso, catástrofes, envelhecimento, doenças e morte. O homem está sujeito às agruras existenciais e cada um age no mundo superando os obstáculos impostos pela existência. (…) o homem é um ser-para-morte e isto quer dizer que tudo o que se planeja e se alcança se desembocará em um irremediável fim que já está previsto desde o nascimento. Dessa forma compreende-se que o adoecer faz parte da natureza humana e isto acarreta dor e sofrimento, pois a morte é a possibilidade fundamental. Para o homem, é a única certeza que se tem. (…). Na prática hospitalar, ao entrarmos em contato com o ser que sofre muitas vezes nos sentimos assim, doídos pela condição da saúde do outro: trata-se da nossa dor, que nos remete à nossa existência e naturalmente à nossa morte. Sabemos que cabe a cada um morrer a própria morte como sentir a própria dor. “Pode-se retardar a morte, mas jamais o homem conseguirá deixar de morrê-la. É imprevisível e inevitável, o que a torna tão apavorante para muitas pessoas, principalmente aquelas que têm a ilusão de poder controlar sua própria existência, alegando não estarem sujeitas às forças da morte”.

Eunice integrou a equipe técnica que realizou a análise dos serviços BioParque. Transcrevemos, a seguir, recortes dessa análise que revelam sua percepção. A morte de um ente querido desencadeia o vazio existencial e acredito que a proposta do BioParque pode auxiliar no processo de elaboração da perda sofrida, tornando tolerável essa ausência intolerável. Divulgar esta proposta trará à tona algo que não é comum para nós, da cultura ocidental, que é ver a morte com naturalidade. Compreendo que o que está sendo oferecido é um novo ritual que pode se constituir como um novo olhar sobre a questão da morte, que desencadeia tantos conflitos existenciais em nossa cultura. Diante da perda de um ente querido pode surgir um sentimento de falta de significado para a vida, podendo gerar sofrimento e adoecimento. É como diz FRANKL1 (1989), o homem se revela como um ser em busca de sentido; da mesma forma que existe no homem uma vontade de sentido, existe também um sentido a ser atribuído à vida, e esse sentido não pode ser separado do seu contexto.

Embora o luto seja uma experiência individual, ele não pode ser analisado fora do contexto familiar, social e da comunidade. A dor do luto é parte da vida, e só sentimos a perda daqueles com os quais tivemos algum vínculo afetivo. Prestar uma homenagem a quem já se foi pode ser uma forma de ajudar aos que ficam a
atribuir um sentido à vida, através da destinação das cinzas do processo de cremação. Após esta homenagem acredito que a família possa experenciar certa leveza e bem-estar, desde que tenham conseguido atribuir um sentido a essa vivência, tornando-a significativa. Após o óbito e cremação os familiares precisam se ajustar ao mundo e isso ocorre através do processo de enlutamento. Nesse momento é feita uma revisão dos valores fundamentais da vida e das próprias crenças filosóficas na busca de um significado para a perda e na busca de uma nova direção para a própria vida. E aí surge uma nova proposta: o BioParque. Acredito que esta proposta ajudará as pessoas enlutadas a desenvolverem novas habilidades e repertórios e que possam continuar a vida, reposicionando em termos emocionais a pessoa que faleceu.

Utilizar as cinzas resultantes da cremação para o desenvolvimento de uma árvore a ser plantada no parque, pode ser compreendido como uma forma de oferecer um sentido à vida do enlutado, e um local adequado para o falecido, onde sua memória possa ser preservada. Pode ser, ainda, uma forma dos familiares encontrarem um lugar em sua vida emocional para que possam continuar vivendo bem no mundo sem, no entanto, desistir da sua relação com a pessoa que faleceu.

Pensando nos sintomas do luto, na área afetiva, é sabido que muitas vezes, diante da morte do outro, sentimentos de culpa podem surgir, pelas decisões tomadas ou não com relação ao falecido. No ritual oferecido pelo BioParque, ao cultivar as lembranças e organizar a narrativa da história é possível para a família retomar a sua relação com o morto; reconhecer e valorizar algo nesta pessoa, o que, muitas vezes, somente se torna possível a
partir da perda.

Este ritual poderá auxiliar na simbolização e elaboração da perda e elaboração do processo de luto. Pode também se constituir como um mecanismo de reparação, pois na medida em que eu faço esta homenagem, tenho a possibilidade de reconhecer o quanto o outro foi significativo para mim.

A associação das cinzas com o plantio da árvore, uma nova vida, simboliza que somos todos uma parte da Vida e que a vida tem um sentido. Me fez lembrar o livro “A História de uma folha” , que tem as folhas como personagem e conta como elas mudam com a passagem das estações caindo finalmente ao solo com a neve do inverno, ilustrando o equilíbrio entre a vida e a morte. De fato essa ação de plantar uma árvore, repleta de significados, traz a possibilidade de perpetuação da vida a partir das reminiscências. “Manter vivas as nossas lembranças e as histórias de quem amamos é cultivar e preservar parte de nós mesmos”.

Possibilitar à família eleger uma espécie diferente de árvore, a ser plantada no local escolhido por eles é como oferecer um novo lugar para a continuidade desta história, que se dará de forma integrada à natureza. Como um continuum, através do BioParque: a natureza criando forma a partir do sentido dado por outras pessoas àqueles que partiram, de maneira ordenada, equilibrada, respeitosa e singular. Como psicóloga creio que a Saúde biológica e psicológica em si não é o fim do homem; são meios para ele estar em condições para realizar o sentido que a vida lhe oferece. A ausência de sentido é sinal de uma má adaptação emocional, psicológica, que gera o adoecimento emocional e acentua a angústia existencial.

Buscar este recurso oferecido pelo BioParque pode representar um meio de lidar com a questão do sentido da vida, conferir um sentido mesmo ao sofrimento e à morte. “É verdade que nada podemos levar conosco quando morremos. Mas aquela totalidade de nossa vida, que completamos no momento definitivo de nossa morte, fica fora da sepultura e fora permanece – e isso é assim não apesar de, mas exatamente porque ela entrou no passado”.

Sabemos que a morte vem a qualquer momento e para todos nós, afinal somos finitos, e também que os familiares precisam de um espaço para expressar sentimentos pertinentes ao processo do luto.

“Resgatar, reconstruir e valorizar as memórias e as origens de nossos familiares e antepassados, uma nova forma de realizar uma despedida”. Considero que este tem que ser um processo dinâmico, do ponto de vista da ontologia do tempo, pois a qualquer momento, toda história pode ser reescrita, resgatada e complementada, dando sentido para aquele que partiu.

Eunice Moreira Fernandes Miranda
Psicóloga Humanista-Existencial CRP – 04/7997

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